* Por Erik Nybo
Confira aqui a primeira parte do artigo sobre a regulação do mercado de aplicativos de táxi
2. A regulação do setor de táxis
O surgimento dos aplicativos de táxi motivou a recente revisão da regulação do setor de táxis para abarcar o avanço da tecnologia. A princípio, a competência regulatória do serviço de táxi é municipal, conforme previsto no art. 30, inciso V da Constituição.
Referido artigo estabelece a competência privativa do Município para “organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”. Apesar disso, ficou relegado à União a competência privativa para legislar sobre diretrizes da política nacional de transportes, o trânsito e transporte, conforme previsto no art. 22, incisos IX e XI da Constituição.
Diante da aparente incongruência entre os artigos mencionados, o Supremo Tribunal Federal se manifestou quanto à competência regulatória do Município e da União em pelo menos quatro ocasiões, em Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade. Na ADI 2.606/SC, de relatoria do Min. Mauricio Corrêa, foi julgado que a regulação do serviço de moto-táxi seria “matéria originária e de interesse nacional que deve ser regulada pela União”.
Em seguida, na ADI 3.135/PA, de Relatoria do Min. Gilmar Mendes, decidiu-se pela competência da União para legislar sobre trânsito e transporte. A ADI 3.136/MG, de relatoria do Min. Ricardo Lewandowski, não foi diferente. Por fim, no julgamento da ADI 3.679/DF, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence, confirmou-se o entendimento anterior de que a União teria a competência privativa para legislar sobre o trânsito e transporte. Portanto é de competência da União legislar sobre o trânsito e transporte, de forma a criar as regras gerais, mas cabe ao Município legislar sobre o transporte quando este for de interesse local.
Definida a competência para legislar sobre matérias de trânsito e transporte, cabe questionar se a regulação dos aplicativos de táxi deve ser alocada sob a mesma categoria. Como mencionado anteriormente, os aplicativos de táxi não se confundem com o contrato de transporte celebrado entre taxista e passageiro e representam, em verdade, agentes do mercado de tecnologia, softwares.
Os aplicativos de táxi, marketplaces, desenvolvem atividades de intermediação e/ou licenciamento de software. Assim, possível e plausível defender que a regulação desses aplicativos não deveria estar sujeita aos órgãos ligados ao trânsito e transporte, tampouco às matérias de regulação sobre referidos segmentos, pois as empresas operadoras destes aplicativos são empresas de software e tecnologia da informação.
2.1. A Política Nacional de Mobilidade Urbana e as leis federais
A Lei nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012, a denominada Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), regulamenta em nível federal a atividade de táxi, em conjunto com a Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro – CTB) e a Lei nº 12.468, de 26 de agosto de 2011 (Lei do Táxi).
O art. 96, inc. III, alínea d, do CTB qualifica como uma categoria de veículo, o veículo de aluguel, categoria na qual se enquadram os táxis. Por sua vez, os arts. 107 e 135 do CTB expõem as preocupações que demandam a fiscalização desta categoria de veículos, quais sejam, as condições técnicas, de segurança, higiene e conforto dos veículos, devendo referida categoria possuir autorização, permissão ou concessão do poder público competente para explorar essa atividade.
Além disso, o art. 2º da Lei do Táxi, que regulamentou a profissão de taxista, menciona ser atividade prestada pelo taxista de forma privativa, o transporte público individual remunerado de passageiros. Portanto, apenas este tipo de profissional poderia prestar referido serviço, atendidos os requisitos definidos no art. 3º da mesma Lei. Contudo, é no art. 4º, inc. VIII da PNMU que se define claramente o conceito do transporte público individual de passageiros, qual seja, o “serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas”.
2.2. A diferença entre o transporte público individual e o transporte privado individual
A conceituação e a diferenciação dos serviços de transporte privado individual e transporte público individual tem sido um dos temas centrais na discussão sobre a regulação dos aplicativos de mobilidade urbana.
A atividade de transporte público individual é atividade privativa de taxistas e, portanto, requer uma autorização do Poder Público para sua prestação, conforme previsto nos artigos do CTB mencionados anteriormente. Dentre as diversas acepções do termo “autorização”, DI PIETRO (2010, p. 226) destaca que a autorização é o ato unilateral e discricionário pelo qual o Poder Público faculta ao particular o exercício de uma atividade que, sem o seu consentimento, seria proibido.
Ou seja, a autorização é exigida para o exercício daquelas atividades que, por razões de segurança, dentre outras, são vedados por lei ao particular. No entanto, o Poder Público, com base em seu poder de polícia, pode afastar referida proibição e autorizar a atividade nos casos em que entender não existir perigo ao interesse da coletividade, como é o caso, por exemplo, do serviço de transporte realizado por taxistas.
A atividade de transporte privado individual, de outro lado, não é um serviço expressamente previsto na PNMU e, portanto, não está sujeita à autorização do Poder Público. É diferente, por exemplo, do caso do transporte privado coletivo que teve previsão expressa e detalhada no normativo. Apesar disso, vale ressaltar que o transporte privado individual não é uma categoria nova de transporte. O art. 3º, § 2º da PNMU ao definir as classificações do transporte urbano permite a qualificação deste tipo de serviço, o qual sempre foi praticado por motoristas particulares.
Ademais, a categoria de transporte privado individual, inclusive, recentemente foi objeto de estudo realizado pelo Departamento de Estudos Econômicos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) sobre a análise da concorrência e a regulação do mercado de transporte individual de passageiros¹ e também pela Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda², motivo pelo qual também não se pode questionar essa atividade no sentido de que os serviços prestados estariam sendo desenvolvidos sob a pretensão de criação de uma nova categoria de serviços.
Assim, atendendo ao princípio da legalidade, aquilo que não está proibido, está permitido. Some-se a isso o dizer do art. 170, parágrafo único da Constituição: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
Por se tratar de um serviço privado, como defendem os aplicativos desse segmento, a atividade de transporte individual privado não pode ser confundida com a atividade privativa de taxistas, uma vez que não se enquadra na hipótese descrita no art. 2º da Lei do Táxi e, por isso, não caberia ao Poder Público autorizar a exploração de referida atividade, já que não há referida previsão na PNMU.
A questão cinge-se ao fato de que, apesar de o transporte público individual remunerado de passageiros ser atividade privativa de taxistas, atualmente percebe-se a crescente atuação de motoristas privados atendendo a chamadas de corridas solicitadas por meio de aplicativo. A atuação do aplicativo UBER, fomentou uma agenda legislativa e regulatória sobre o setor de táxi a partir de 2015, tendo como principal finalidade proibir a atuação de aplicativos desse gênero e dos motoristas cadastrados nos diversos municípios onde atuam.
A atividade é defendida como sendo privada, diferentemente daquela atividade prestada pelos taxistas, porque o motorista apenas busca o passageiro que solicita seu serviço por meio do aplicativo, sendo portanto necessário que o passageiro seja parte de uma rede de usuários privada.
As corridas nunca são oferecidas para quaisquer pessoas nas ruas, motivo pelo qual é considerado privado, não público. De outro lado, os taxistas e diversos outros agentes entendem que, em essência, trata-se da prestação do serviço de táxi, o transporte público individual de passageiros.
Por fim, vale ressaltar que se engana aquele que pretende diferenciar os serviços de transporte público individual e transporte privado individual pela alegação de que o taxista está obrigado a não recusar corridas, enquanto o motorista privado teria essa possibilidade. Ambos estão obrigados a não recusar as corridas sob o art. 39, inciso II do Código de Defesa do Consumidor³ e, caso recusem a corrida de algum passageiro, incorreriam nas penalidades previstas no art. 56 do mesmo Código. Sob o art. 39, inciso II ambos são fornecedores de serviço.
A diferença no caso do motorista que presta o serviço de transporte privado individual é que este o faz por meio do uso de aplicativo que lhe oferece o contato de diversos passageiros que desejam celebrar um contrato de transporte. Assim, uma plataforma como o UBER coloca um pedido de corrida feito por um potencial passageiro à disposição dos motoristas próximos ao local de solicitação da corrida, os quais tem a liberdade de aceitar ou não o pedido.
O fato de um motorista não se propor a atender o potencial passageiro não significa uma recusa em prestar serviços conforme o art. 39, inciso II, mas sim o exercício de sua autonomia privada em decidir se vai realizar uma corrida ou não. Outra hipótese, e esta sim condenada pelo art. 39, inciso II, seria a de aceite da corrida e, ao identificar o passageiro no local, negar-se a prestar o serviço, o que resultaria em discriminação do passageiro.
Referências Bibliográficas
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 23ª Ed. São Paulo: Atlas, 2010.
[1] O tema foi tratado especificamente no relatório do Departamento de Estudos Econômicos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) intitulado de “O Mercado de Transporte Individual de Passageiros: Regulação, Externalidades e Equilíbrio Urbano”, disponível em <www.cade.gov.br/upload/O%20Mercado%20de%20Transporte%20Individual%20de%20Passageiros.pdf>. Acesso em 09 de fev. de 2016.
[2] O Ministério da Fazenda, por meio da Secretaria de Acompanhamento Econômico, realizou estudo sobre o impacto concorrencial da introdução do aplicativo UBER no mercado de transporte individual de passageiros, apresentado na Nota Técnica 06013/2016/DF. A conclusão sugere a desregulamentação do setor de táxis.
[3] Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 – Código de Defesa do Consumidor. Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: II - recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes.
Erik Fontenele Nybo é gerente jurídico global da Easy Taxi, autor e coordenador do livro “Direito das Startups”, advogado formado pela Fundação Getúlio Vargas.
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